domingo, 4 de novembro de 2018

A MANIPULAÇÃO DE IMAGENS ANTES DA ERA DAS FAKE NEWS

Em nosso curso de fotografia em BH, estamos sempre estimulando os alunos a ampliarem seu repertório cultural, a fim de que possam enriquecer a criação de suas imagens.
Assim, iniciamos hoje, uma série de publicações, abordando fotos memoráveis, seus contextos e autores.

Neste texto, vamos explorar uma das fotos mais icônicas da história - A Bandeira Vermelha sobre o Reichstag.
Em tempos de uma enxurrada de fake news, poderíamos pensar que a internet e o Photoshop seriam, em boa parte, responsáveis.

Mas a manipulação de imagens não é procedimento recente – antes do surgimento da fotografia digital e dos softwares de edição e tratamento, delicadas técnicas manuais eram utilizadas para que a fotografia servisse aos objetivos do fotógrafo e da mídia. Uma das mais famosas imagens da tomada de Berlim pelos soldados soviéticos,durante a Segunda Grande Guerra feita pelo fotógrafo Yevgeny Khaldei, é a confirmação.

"A Bandeira Vermelha sobre o Reichstag" - Yevgeny Khaldei


Muitas vezes chamado de “Robert Capa Russo”, o fotógrafo ucraniano Yevgeny Khaldei (1917 – 1997) trabalhou para a Agência de Telégrafos da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial e suas poderosas imagens do avanço do Exército Vermelho, através dos campos de batalha europeus, ajudaram a consagrá-lo como o mais famoso fotógrafo de guerra da Rússia. Sua imagem dos soldados soviéticos hasteando a bandeira nacional no alto do Reichstag em ruínas, comemora o momento em que as forças soviéticas tomaram o prédio, em 30 de Abril de 1945, durante a Batalha de Berlim.


Apesar da imensa repercussão e do peso histórico atribuído à imagem, ela não é – literalmente – expressão da realidade. A cena foi produzida por Khaldei na manhã do dia 02 de Maio de 1945, dias após o acontecimento. Como ninguém havia fotografado o hasteamento da bandeira, o fotógrafo identificou a oportunidade de criar uma obra prima, possivelmente, comparável à “A Old Glory” de Joe Rosenthal, feita naquele mesmo ano.

"A Old Glory" - Joe Rosenthal

Yevgeny Khaldei almejava mais do que criar uma foto famosa, icônica, para alimentar sua fama – comunista assumido e fiel à sua terra natal, percebeu o peso e o apelo dramático, que aquela imagem teria para seu de seu povo: ela era a verdadeira representação da esmagadora vitória da União Soviética sobre os nazistas. Aquela fotografia, distribuída, divulgada e vista por milhares de pessoas, era a vingança de mais de 30 milhões de combatentes, que perderam suas vidas na Frente Oriental.

Na verdade, o comandante nazista havia se rendido poucas horas antes de Khaldei reconstruir o instante da vitória, tendo subido no edifício, acompanhado de alguns companheiros, com sua Leica – o fotógrafo usou um único rolo de filme, expôs 36 fotogramas e editou as imagens várias vezes, buscando a dramaticidade e a narrativa, que com certeza, agradaria os censores soviéticos.

Quando a foto foi impressa pela primeira vez na revista sindical "Ogonjok" em 13 de maio de 1945, houve a manipulação de um detalhe na foto: na verdade, o soldado do Exército Vermelho, que estava apoiando os companheiros, usava dois relógios, sendo um em cada braço. A história aponta que os relógios tinham um significado especial para os soviéticos, como se fossem troféus - sobreviventes relatam que, quando o Exército Vermelho tomou Berlim, exigia aos alemães: "Uri, uri!" ("Relógios, relógios!"). Conclui-se, que o relógio extra havia sido roubado dos alemães e não seria de bom tom para a imagem soviética, expor um soldado usando artigos roubados. A manipulação também tinha a intenção de proteger o soldado da ira de Stalin, que era contra a pilhagem.

Khaldei admitiu mais tarde, que arranhou um dos negativos, fazendo desaparecer o relógio do braço direito do “soldado”, com uma agulha.
Primeira foto da série "A Bandeira Vermelha sobre o Reichstag" publicada - Yevgeny Khaldei


Foi depois, divulgada uma nova versão da foto, onde nuvens escuras de fumaça aparecem no céu, levando os espectadores a pensar, que a imagem havia sido captada logo após a vitória dos soviéticos. Na última versão, uma nova bandeira aparece, agitando-se dramaticamente, ao vento. 

Pelo menos três outros fotógrafos militares soviéticos tenham fotografado soldados com bandeiras em 1 e 2 de maio de 1945 no Reichstag, a imagem de Khaldei prevaleceu. Mais tarde, numa entrevista, quando questionado sobre as manipulações, ele apenas respondeu: "É uma boa foto e historicamente significativa. A próxima pergunta, por favor”.

Embora as imagens de Khaldei tenham sido muito elogiadas na época, foram publicadas sem créditos.
Apenas após a queda do Muro de Berlim, o crédito de autor e o reconhecimento lhe foram dados.

Três anos depois de voltar da guerra, em 1948, Khaldei foi demitido da Tass, vítima de uma das periódicas ondas de anti-semitismo, que varriam os órgãos oficiais soviéticos. Mais tarde, passou a integrar a equipe do Pravda, o jornal do Partido Comunista, para ser novamente despedido, novamente por ser judeu, em 1972. Desde então, sobreviveu como pôde, sempre fotografando, até 1991, quando afinal se aposentou, já na Rússia pós-comunismo.

Khaldei viveu em um apartamento no 6º andar de um prédio simples em Moscou, em que o único cômodo servia de sala, quarto, escritório, laboratório e arquivo de negativos de sessenta anos de fotografia.
Yevgeny Khaldei faleceu em Moscou, em 6 de outubro de 1997, aos 80 anos.



A BANDEIRA FALSA, O RELÓGIO ESCONDIDO, AS NUVENS INVENTADAS 


A Fumaça – Duas colunas de fumaça ao fundo da cena sugerem, que a sangrenta Batalha de Berlim ainda estava ocorrendo no momento da foto. Na imagem original, a fumaça vista à distância é bem fraca. Khaldei editou a imagem copiando a fumaça de outra tomada, para aumentar a dramaticidade. 

O Reichstag – O edifício do século XIX foi importante na história alemã como sede do parlamento, tendo sido usado no Terceiro Reich com finalidades de propaganda e militares. 

Os Soldados – Em 13 de Maio, quando a imagem foi publicada, foi divulgado que os soldados eram Mikhail Yegorov e – para fazer a felicidade de Stalin, que havia nascido na Georgia – um georgiano chamado Meliton Kantaria. Depois do fim da Guerra Fria, veio à tona que o homem hasteando a bandeira era, na verdade, um ucraniano, Alyosha Kovalyov. 

A Bandeira – Khaldei pretendia criar uma imagem icônica, mas não tinha uma bandeira. Persitindo na ideia, voou até Moscou onde conseguiu três toalhas vermelhas utilizadas em funções oficiais. Passou a noite costurando nelas, a foice e o martelo, antes de voar de volta à Berlim para a foto. 

Os Relógios – durante as batalhas, os relógios tinham um significado especial para os soviéticos. Eles os consideravam como troféus, indicando vitória. A história relata, que quando os soldados vermelhos tomaram Berlim, gritavam “Uri, uri!”, reclamando os relógios dos derrotados. A primeira foto publicada da série mostrava três homens, que representavam os soldados soviéticos comemorando a vitória, hasteando a bandeira – um deles usava dois relógios, um em cada braço, o que indicaria o roubo de pelo menos, um. Khaldei, protegendo a imagem dos soldados soviéticos, apagou um deles no negativo, usando uma agulha.


Novembro . 2018




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