sábado, 29 de setembro de 2018

FOTOGRAFIA COMERCIAL X AUTORAL: UM FALSO PROBLEMA?

O perfil de instagram @insta_repeat possui 133 publicações. Até aí, nada demais.
Sua relevância não vem da quantidade de imagens postadas, mas de sua proposta provocadora. Sua autora, identificada como @emmasheffer, usou a plataforma para nos mostrar o quanto as fotos que compartilhamos na internet são semelhantes umas às outras.
As imagens são organizadas em blocos temáticos, que formam mosaicos de fotografias de terceiros que, depois de editadas e repostadas em conjunto, explicitam de maneira chocante a monotonia estética, que reina no Instagram.
Cada conjunto é acompanhado de legendas como: “Insta Hat”, mostrando dezenas de fotos de pessoas de chapéu, fotografadas de costas, todas com o mesmo ângulo. Ou: “drones olhando diretamente para baixo com lago no centro”, mais uma vez, dezenas de fotos muito parecidas. E por ai vai.


A questão da autenticidade na fotografia não é nova.
Desde sua origem em meados do século XIX, fotógrafos, cientistas e artistas de várias vertentes têm debatido as diferentes dimensões das imagens fotográficas e, sobretudo, o papel do fotógrafo como autor das imagens produzidas.
Para muitos, a fotografia não poderia ser considerada uma forma de arte pois, diferentemente dos pintores, as imagens criadas pela máquina eram “imagens técnicas”, frutos diretos de processos físico-químicos que se produziam “sem a interferência humana”. Nessa vertente, o interesse pela fotografia vinha de sua potencialidade científica.

Por meio das máquinas, foi possível pela primeira vez promover estudos detalhados sobre o movimento de animais e humanos, como nas obras de Eadwerard Muybridge e Etienne-Jules Marey, ou analisar em detalhes os caracteres fenotípicos dos diferentes tipos humanos, como em Alphonse Bertillon e Maurice Vidal Portmann, entre outros.
A fotografia, encarada como imagem técnica, trazia outra novidade.
Seu caráter científico lhe dava uma aura de realismo numa dimensão inatingível pelos pintores de então. Por mais naturalistas que fossem as pinturas do neoclassicismo do século XIX, elas eram sempre criações subjetivas de seus autores, que interpretavam a realidade segundo sua vontade.
Apenas a fotografia científica era capaz de documentar o mundo objetivamente, ou seja, a documentação fotográfica mostrava o real como nunca havia sido possível, permitindo inclusive seu uso como prova em processos judiciais.



Contra essa vertente surgiu, já em 1880, um movimento conhecido por Pictorialismo, que pleiteava o status de arte para a fotografia, negando o caráter puramente técnico das imagens fotográficas. Na batalha por reconhecimento no mundo das artes, fotógrafos como Alfred Stieglitz, Henry Peach Robinson, Edward Steichen, Clarance White além de muitos outros, produziram imagens manipuladas em laboratório, que buscavam imitar a estética das pinturas.


Na virada do século XX o debate sobre o estatuto artístico da fotografia já se libertava da estética pictórica e alçava vôo amparado pelo aprimoramento da técnica.
Grandes nomes como Ansel Adams, Paul Strand e Edward Weston apostaram na excelência técnica, usando câmeras de grande formato e definição apurada, além de desenvolverem novas metodologias para a produção do que ficou conhecido como “Fotografia Direta”. A obra de Weston intitulada “Nautilus Shell”, de 1927, foi leiloada em 2010 por mais de um milhão de dólares.
Enfim, após cerca de 80 anos o mercado da arte reconheceu a genialidade de seu autor!
Mas afinal, o que tudo isso tem a ver com fotografia comercial? Eu diria, tudo a ver!
Um dos principais desafios dos (das) fotógrafos (as) iniciantes é descobrir o tal “estilo pessoal”. Apresentado como a pedra filosofal do sucesso na fotografia, essa tal marca autoral parece uma miragem inalcançável, um enigma hermético acessível apenas aos iniciados.
Muitas vezes acabamos nos rendendo a padrões estéticos que fazem sucesso e relegamos a questão da autoria para os fotógrafos “de galeria”. Mas da mesma forma que as imagens postadas pelo @insta_repeat, os ensaios da chamada “fotografia social” acabam muitas se tornando repetitivos, esteticamente monótonos e desinteressantes. Em geral, o termômetro do sucesso tem sido o número de seguidores nas redes sociais, que transformam alguns poucos profissionais em ídolos de uma legião de fotógrafos, que muitas vezes dominam a técnica fotográfica, mas não conseguem desenvolver uma linguagem própria ou uma marca pessoal.

Como fazer então para não cairmos na armadilha da cópia?
Qual o caminho para fazer diferença em um oceano infinito de imagens semelhantes?

Do meu ponto de vista, a única forma é um trabalho árduo de aprendizado, de evolução pessoal e de educação visual.

Se você procura um atalho, esqueça.
Não acredito em “cinco dicas para desenvolver seu estilo pessoal”.
O amadurecimento estético vai muito além de voar pelos perfis de sucesso na internet.

Como inúmeros autores já disseram, apenas o estudo da história dos grandes fotógrafos, a leitura de textos teóricos e o exame exaustivo de imagens significativas pode fazer com que cada um de nós descubra dentro de si uma forma especial de olhar e ver o mundo.
Certa vez me disseram, “não compre equipamentos, compre livros!”.
Por mais exagerado que isso possa parecer, a fotografia, como diria Cartier-Bresson, é fruto do alinhamento entre o olho, a mente e o coração. Se acreditamos mesmo que as fotografias não são produzidas pela máquina, mas pelo fotógrafo, as imagens que produzimos são reflexos de nós mesmos em conexão com o mundo em que vivemos. Por isso, novas dimensões para os ensaios de “life style” se escondem nos trabalhos clássicos de documentação da vida cotidiana.

Há um universo a ser descoberto na história da arte para enriquecer os ensaios de casamento. Produtos podem ser encantados pelas experiências estéticas de artistas consagrados. A fotografia, como a alquimia, pode ser um meio para evoluirmos junto com as imagens que produzimos, seja para a apreciação em galerias, seja para levar a felicidade a um jovem casal que se lança na aventura do matrimônio.

Imagens:

1. Pagina @insta_repeat
2. Eadwerard Muybridge
3. Maurice Vidal Portmann
4. Edward Steichen
5. Edward Weston

Setembro . 2018

terça-feira, 25 de setembro de 2018

UM PROJETO FOTOGRÁFICO PARA APOIAR O TERCEIRO GÊNERO . OS HIJRAS

Chame-me de Heena: Hijra, O Terceiro Gênero

Um profundo relato, feito pela fotógrafa Sharhia Sharmin desde 2012, sobre um grupo único de pessoas – fora das noções ocidentais de gênero – que tentam encontrar seu lugar no mundo.


“Eu me sinto como uma sereia. Meu corpo me diz que sou um homem, mas minha alma me diz que sou uma mulher. Eu sou como uma flor, uma flor feita de papel. Eu sempre serei amado à distância, nunca serei tocado e não haverá nenhum perfume, pelo qual se apaixonar”, diz Heena, 51 anos, de Dhaka, Bangladesh, em 2012.

"Hijra" é um termo do sul da Ásia, que não tem correspondência exata na moderna taxonomia ocidental de gênero, designada como masculina ao nascimento, com identidade de gênero feminina e que, eventualmente, adota papéis femininos.




 Eles são, muitas vezes e grosseiramente, rotulados na literatura como hermafroditas, eunucos, transgêneros ou mulheres transexuais. Atualmente, usa-se um termo social mais adequado - o “Terceiro Gênero”. 

Transcendendo a definição biológica, os hijras são um fenômeno social, fazendo parte de um grupo minoritário, e têm um longo registro histórico no sul da Ásia. No entanto, sua aceitação social e as condições atuais de vida variam, significativamente, em países como Bangladesh, Índia e Paquistão. Talvez os Hijras de Bangladesh enfrentem a pior situação, o que obriga boa parte deles a deixar sua pátria e migrar para a Índia.

Embora tenham suas próprias origens familiares e sociais, os Hijras experimentam um verdadeiro sentimento de pertencimento, quando estão em seu próprio grupo - os Hijras. Esses grupos oferecem a eles o abrigo natural de uma família e o calor do relacionamento humano. Fora do grupo, são discriminados e desprezados em quase toda parte.




Tradicionalmente, esses indivíduos ganhavam a vida com base na crença cultural de que os Hijras tinham o poder de abençoar a casa das pessoas com prosperidade e fertilidade. Em virtude da história geográfica e cultural compartilhada com o subcontinente, essa crença hinduísta ganhou, aos poucos, espaço na entre os muçulmanos, que habitavam aquela terra. Os tempos mudaram e os Hijras perderam seu espaço privilegiado na sociedade. Atuamente ganham a vida andando pelas ruas pedindo dinheiro a lojistas, passageiros de ônibus e trens ou através da prostituição.

Eu, como quase todos que fazem parte do meu círculo social, cresci vendo os Hijras como pessoas “menores”, como sub-humanos - seus hábitos, modo de vida e até mesmo sua aparência, os definiam como “diferentes”, “desviados” , como se fossem o testemunho vivo de uma aberração biológica. Então, conheci Heena, que me mostrou como eu estava errado. Ela contou sobre sua vida, me fez parte de seu mundo e me ajudou a ver algo além da palavra “Hijra”. Ela me fez entender - ela e outros membros de sua comunidade, como mães, filhas, amigos e amantes - quem são de verdade.

No mundo de hoje, os hijras dificilmente têm a oportunidade de uma vida normal. Eles não têm escolas onde estudar, nenhum templo para orar, nenhum governo e organizações privadas, que queiram vê-los em sua lista de funcionários. Eles não têm acesso a sistemas legais e os provedores de serviços de saúde, não os recebem.

Eu comecei este projeto autofinanciado e em andamento, no início de julho de 2012. Meu trabalho conquistou os corações e a confiança de muitos Hijras, o que espero ser evidente em meu ensaio fotográfico. Para contar a história completa, o trabalho deve continuar.

Através do meu trabalho, espero dar voz aos “sem voz”. A fotografia sempre foi uma ferramenta extremamente eficaz ao desafiar o estigma social e ajudar a revelar uma realidade diferente para o mundo. Espero que meu trabalho ajude os Hijras a encontrar um espaço para respirar em uma sociedade claustrofóbica como a nossa e a encontrar novos amigos em seu mundo sem amigos.

Fotografias e texto de Shahria Sharmin

Tradução livre - Andreia Bueno
Setembro . 2018